Gabriel Pereira Oliveira (IFRN, PPGHIS/UFRJ)
“Quem controla o passado controla o futuro;
quem controla o presente controla o passado”
George Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro
Escrita logo após a Segunda Guerra Mundial como parte da obra clássica Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, a frase acima de George Orwell mostra-se cada vez mais inspiradora nos dias de hoje. Especialmente em tempos de crise, a busca de monopólio sobre as narrativas históricas torna-se estratégia decisiva para a afirmação de projetos de poder. O destaque sobre determinados eventos gloriosos ou traumáticos, sobre pretensos heróis ou vilões, tudo isso é fundamental aos arranjos sociais e políticos das mais diferentes sociedades. Aliás, não é estranho vermos o quanto alguns nomes e experiências, em geral ligadas a homens brancos e de alto prestígio, costumam ser enaltecidas por uma história oficial. Ao mesmo tempo, esse processo é acompanhado por tentativas de se deixar de fora da história uma imensidão de outras e outros protagonistas, humanos e não-humanos.
Nos últimos dias no Brasil, um dos debates que ganhou notoriedade foi justamente sobre a chamada transposição do rio São Francisco e a questão sobre quem seria o grande responsável ou, como se tem dito, o “pai” desse projeto. Essa obra teve início em 2007, despontando como o maior empreendimento de infraestrutura hídrica do Brasil. Segundo propagandas e discursos de governantes, a principal justificativa para esse megaprojeto seria solucionar o problema da seca no Nordeste do país.
Contudo, além das críticas em função de tal projeto voltar-se prioritariamente a interesses do agronegócio e de complexos industriais e de haver outras alternativas bem mais baratas e de acesso mais amplo, tem havido uma série de questionamentos em função dos impactos ambientais da obra. Afinal, trata-se de desviar água de um rio já bastante comprometido, tomado por barragens, envolto pela destruição de matas ciliares e diante de um cenário cada vez mais grave de emergência climática.[1] Se, no fim do século XVI, o cronista português Gândavo disse que o rio São Francisco “chega tão soberbo no mar” que, saindo de sua foz, “daí três léguas ao mar se acha água doce”,[2] o que se tem visto nos últimos anos é justamente o contrário, com a água do mar adentrando cada vez mais o leito do rio. E isso afeta a flora e fauna em torno do rio, inclusive a espécie humana, prejudicando as condições de saúde e estilos de vida, como a de pescadores na pequena cidade de Piaçabuçu.[3]
Apesar disso, o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, inaugurou nos últimos dias um trecho da obra. Não obstante o cenário de pandemia de Covid-19 a recomendar a não aglomeração de pessoas e mesmo tendo realizado em sua gestão um percentual bastante diminuto da transposição, o presidente agendou o referido evento de inauguração. A prioridade seria a tentativa de associar, quase a qualquer custo, a imagem do presidente à transposição e, assim, à região Nordeste, que é onde ele tem tido os maiores índices de rejeição. Além de utilizar-se de músicas ligadas a essa parte do país, como “Riacho do Navio” de Luiz Gonzaga – o que, inclusive, gerou uma “nota de nojo” por parte da família do artista[4] –, Bolsonaro disse até mesmo que “após 500 anos de Brasil, vamos em 20 de junho ao Ceará comemorar a chegada das águas do São Francisco àquele Estado”.[5] Apesar desse apelo ao século XVI para mostrar o peso da inauguração da obra, é importante ressaltar que desconhecemos onde o presidente tenha, por ventura, conseguido encontrar evidências de que a transposição fosse almejada há 500 anos, como um desejo ligado a uma hipotética raiz da nação brasileira.
Esse debate em torno da história da transposição, porém, não foi também criado pelo atual presidente. Em 2017, a inauguração de um determinado trecho pelo então presidente Michel Temer também levantou essa discussão.[6] Sem dúvida, um grande expoente desse tema é Luiz Inácio Lula da Silva, que foi quem propriamente iniciou a obra em seu mandato presidencial. Lula, por exemplo, reiterou várias vezes o quanto esse projeto era uma demanda antiga, que vinha desde o século XIX – quando, de fato, há uma série de fontes que atestam a ocorrência dessa demanda. Nas palavras do então presidente em 2010,
A transposição das águas do rio São Francisco era um desejo do imperador […] Em 1847, ele já sabia da seca no Nordeste, […] a região onde menos chove neste país. E nem Dom Pedro conseguiu fazer; nem Dom Pedro, que era imperador, filho do rei, conseguiu fazer. Precisou vir o Lulinha, filho de Aristides, para fazer; precisou vir um cara de Garanhuns, filho de dona Lindu, casado com dona Marisa, para poder fazer.[7]
Além da missão de supostamente salvar vidas de pessoas que sofrem periodicamente com as secas, a transposição teria, portanto, um peso histórico. O passado nobre, tratando-se de uma obra almejada até mesmo por um imperador, mostrava a importância não apenas do projeto em si, mas também do feito de Lula ao iniciar sua construção. Ao mesmo tempo, esses vestígios mostrariam que a transposição não consistiria em uma ambição pessoal ou arbitrária, mas demonstrariam a necessidade histórica da obra para combater os efeitos da seca. A história mostraria a transposição quase como uma medida natural para aquela porção territorial do Brasil, pensado desde sempre para esse fim.
Porém, quando vemos com calma os vestígios sobre esse tema no século XIX, torna-se possível compreender mais a fundo essa discussão. A reflexão histórica nos mostra a necessidade de vermos o quanto a transposição não tem nada de óbvia ou natural, mas vem se fazendo imersa em tramas de poder ao longo do tempo. Nem mesmo o termo “transposição” era utilizado no século XIX, quando se falava, por exemplo, em canalização ou abertura de canais do rio. Além disso, o projeto nem sempre esteve atrelado à questão da seca. Durante o regime monárquico brasileiro, esses sonhos de canalizar águas do São Francisco se associaram de um modo especial à questão de transportes, aos interesses de interligar sertões e litoral, de integrar províncias do Império. No mundo de então, marcado pela expansão do capital industrial, ganhavam destaques os canais de navegação. O grande símbolo, nesse sentido, foi o canal de Suez. No caso do Brasil, contudo, a proposta de canal no São Francisco concorreu com outros projetos para conformar as circulações e conexões internas do território monárquico, algumas propostas inclusive muito mais prestigiadas junto à Corte Imperial, como era o caso da Estrada de Ferro de D. Pedro II. Mais antigamente ainda, mesmo antes de 1822, há também registros de que tal projeto hídrico esteve ligado até mesmo à demanda em torno da exploração mineral, sob o sonho de que haveria tesouros escondidos, com ouro nos sertões.[8]
Se hoje a transposição do São Francisco é parte de uma disputa pela história intimamente conectada a projetos políticos, a reflexão histórica nos ajuda não somente a questionar discursos sobre supostas origens da obra, mas também a ver outros protagonistas nesse processo, desde gentes sertanejas e ribeirinhas a aspectos biofísicos do rio, como em torno de sua fauna, flora ou mesmo seus diferentes níveis de profundidade e suas cachoeiras. No fim das contas, a história, inclusive a história ambiental, é fundamental, como diria Orwell, para vislumbrarmos outros projetos de futuro e mesmo de presente e de passado, para nos situarmos melhor nessa disputa sobre o que esquecer e o que lembrar, e, assim, para nos mobilizarmos mais profundamente nas políticas de gestão hídrica, em busca de usos mais democráticos e sustentáveis da água e dos rios.
[1] Transposição do São Francisco: elefante branco nordestino? Entrevista especial com João Suassuna. IHU.
[2] GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil; História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
[3] A seca no São Francisco que salga o café e adoece moradores em uma cidade de Alagoas. El País. 6 nov. 2017.
[4] Netos de Luiz Gonzaga divulgam “nota de nojo” por uso de música do compositor em live de Bolsonaro. G1. 4 jul. de 2020.
[5] Em reunião ministerial, Bolsonaro confirma primeira visita ao Ceará. Diário do Nordeste. 9 jun. de 2020.
[6] Briga pela paternidade de transposição do São Francisco ganha novo capítulo. O Estado de S. Paulo. 9 de março de 2017.
[7] LULA DA SILVA, Luiz Inácio. Discurso em Missão Velha-CE em 13/12/2010.
[8] OLIVEIRA, Gabriel Pereira de. A corrida pelo rio: projetos de canais para o Rio São Francisco e disputas territoriais no Império brasileiro (1846-1886). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2019.
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